O pronome pessoal de terceira pessoa: a referenciação pronominal textual na crônica “Tentação” de Clarice Lispector - Nilda Maria Medeiros
“Tentação”
Ela estava
com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua
vazia as pedras vibravam de calor - a
cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava.
Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como
se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de
momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que
fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser
ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca
ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava num degrau
faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa
velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já
habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi
quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú.A
possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando
uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua
fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá
vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento.
Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina
abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela.
Sua
língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre
tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a
menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem
latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava?
Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou
por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os
pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que
foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram
rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam.
Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No
meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a
criança
vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de
tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva
carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um
instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
Mas
ambos eram comprometidos.
Ela com
sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela
fosse
uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona
esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset
ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com
o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.
Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os
joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele
foi
mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
LISPECTOR,
Clarice. Tentação. In: A legião
estrangeira. São Paulo. Ática, 1977. pp.59-60.
O pronome pessoal, como já dito, de acordo com Neves (2000, p.449), “tem
uma natureza fórica, isto é, ele é
um elemento que tem como traço categorial a capacidade de fazer referência pessoal:” a algo ou a
alguém de forma anafórica ou cataforicamente referidos no texto, conforme se
observa com os pronomes de terceira pessoa.
Considerando a natureza fórica do pronome pessoal, já observamos, na
crônica “Grande Edgar”, uma de suas funções básicas: a interacional, que se
refere à fala em discurso.
E , na crônica “Tentação”, observaremos a sua função de fazer
remissão textual, que se refere a elementos do próprio texto. (NEVES, 2000,
p.452).
“Tentação”
Ela
estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela
era ruiva.
Na
rua vazia as pedras vibravam de calor -
a cabeça da menina flamejava. Sentada nos
degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só
uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu
olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento,
abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva
com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra
desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo
era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua
marca ia fazê-la
erguer insolente uma cabeça de mulher? Por
enquanto ela
estava num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava
era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor
conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
A crônica inicia-se
com o pronome pessoal Ela fazendo
referência a algo que ainda não fora apresentado no discurso. Em seguida,
repete-se o mesmo pronome acrescido de uma informação, a de que esse ela era ruiva. No segundo parágrafo é
que se sabe que o pronome de terceira pessoa ela é referenciador do referente menina. E, logo em seguida, o ela
a retoma.
Ainda no mesmo parágrafo, a expressão uma
menina ruiva é o referente propriamente dito. É interessante observar que
menina aparece de forma indefinida, marcando o inédito para o enunciador que,
em seguida, dirá que elas se olharam. O pronome pessoal oblíquo nos introduz o enunciador no discurso
incluindo-se ao ator menina (nós= eu e ela).
O possessivo sua, bem como os
oblíquos [l]a e a fazem remissão textual à menina,
a qual é retomada pelo pronome pessoal ela.
Foi
quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão
em Grajaú. A
possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando
uma senhora, e encarnada na figura de um cão.
Era um basset lindo
e miserável,
doce
sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá
vinha ele
trotando, à frente de sua dona, arrastando seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A
menina abriu
os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro
estacou diante dela. Sua língua vibrava.
Ambos se
olhavam.
Entre
tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que
viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele
fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o
sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço
sacudiu-a
desafinado. Ele
nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e
continuou a fitá-lo.
No terceiro parágrafo é apresentado outro ator na cena narrativa. E a
remissão a esse novo referente se dá cataforicamente através do possessivo sua, referenciador da menina ruiva. A catáfora nominal um irmão é referenciador do sintagma cão. Um basset lindo, miserável, doce, ruivo, ele, seu, fazem
remissão a cão. Logo em seguida os
dois atores são referenciados por menina
e cachorro.
É interessante observar que, no
parágrafo anterior, o referente menina aparece após um artigo indefinido. Também
o cão, no parágrafo em questão, vem após um artigo indefinido. Mas no momento
do conhecerem-se, bem como do enunciador os conhecer passam a ser referidos
seguidos de artigos definidos.
Ainda tratando dos pronomes de terceira pessoal que fazem remissão
textual, observa-se o [d]ela
retomando menina, o ela retomando [d]ela e o oblíquo a retomando
ela. O oblíquo o retomando ele, o
pronome ele retomando aquele cachorro e o oblíquo [l]o
retomando ele.
Os
pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que
foi que se
disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar
eles se
pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
No
meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E
no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos
esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de
sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos,
entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se
quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
O pronome reflexivo se faz
referência aos dois atores: a menina
e o cachorro, bem como o pessoal eles. No parágrafo observado, o
referente menina ruiva é referenciado
por criança vermelha.
Mas
ambos eram comprometidos.
Ela
com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse
uma mulher. Ele,
com sua
natureza aprisionada.
A
dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset
ruivo afinal despregou-se
da menina
e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam.
Acompanhou-o
com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até
vê-lo dobrar
a outra esquina.
Mas
ele foi
mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
O pronome ela
por duas vezes faz remissão à menina. O pronome pessoal ele e o possessivo sua fazem
remissão a cachorro, o qual é
retomado pelo referenciador basset ruivo.
O oblíquo se refere-se a basset, bem como o oblíquo o retoma o se, e o [l]o retoma o o e, em seguida, é retomado pelo pessoal
ele.
É interessante pensar na construção desse texto a
partir dos elementos em análise, atentando para o processo de geração de
sentido no texto.
Em “Tentação”, o enunciador relata e descreve uma
cena cotidiana a que se submetera. Como algo se dá a partir de seres
desconhecidos e que, só após observações e reflexões desse enunciador intimista
sabe-se da situação por que passam a menina e o cão ruivos – também a
estratégia de construção dos enunciados opera por pronomes antes de apresentar
o nome, bem como a apresentação do cão como sendo um irmão por já inferir a
solidão da menina. A raça e a característica ruiva são descritas posteriormente
porque são elementos observáveis só quando estão frente a frente, mas que o cão
lhe seria um irmão, sabe-se de longe.
É a estratégia, a meta discursiva, gramatical
(?), somando sentidos no tecido textual.
BIBLIOGRAFIA
BECHARA,
Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa.
São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1982.
IGNÁCIO,
Sebastião Expedito. Análise Sintática em Três Dimensões. Franca (SP):
Ribeirão Gráfica e Editora, 2003.
LISPECTOR,
Clarice. Tentação. In: A legião
estrangeira. São Paulo. Ática, 1977. pp.59-60.
NEVES, Maria
Helena de Moura. Gramática de Usos do
Português. Araraquara (SP): Unesp, 2000.
_______ . Texto e gramática. São Paulo: Contexto,
2007.
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