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segunda-feira, 28 de maio de 2012

O Pronome pessoal de terceira pessoa


 O pronome pessoal de terceira pessoa: a referenciação pronominal  textual na crônica “Tentação” de Clarice Lispector - Nilda Maria Medeiros


“Tentação”
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor -  a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú.A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.

LISPECTOR, Clarice. Tentação. In: A legião estrangeira. São Paulo. Ática, 1977. pp.59-60.

O pronome pessoal, como já dito, de acordo com Neves (2000, p.449), “tem uma natureza fórica, isto é, ele é um elemento que tem como traço categorial a capacidade de fazer referência pessoal:” a algo ou a alguém de forma anafórica ou cataforicamente referidos no texto, conforme se observa com os pronomes de terceira pessoa.
Considerando a natureza fórica do pronome pessoal, já observamos, na crônica “Grande Edgar”, uma de suas funções básicas: a interacional, que se refere à fala em discurso. E, na crônica “Tentação”, observaremos a sua função de fazer remissão textual, que se refere a elementos do próprio texto. (NEVES, 2000, p.452).

“Tentação”

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor -  a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.


A crônica inicia-se com o pronome pessoal Ela fazendo referência a algo que ainda não fora apresentado no discurso. Em seguida, repete-se o mesmo pronome acrescido de uma informação, a de que esse ela era ruiva. No segundo parágrafo é que se sabe que o pronome de terceira pessoa ela é referenciador do referente menina. E, logo em seguida, o ela a retoma.
Ainda no mesmo parágrafo, a expressão uma menina ruiva é o referente propriamente dito. É interessante observar que menina aparece de forma indefinida, marcando o inédito para o enunciador que, em seguida, dirá que elas se olharam. O pronome pessoal oblíquo nos introduz o enunciador no discurso incluindo-se ao ator menina (nós= eu e ela).
O possessivo sua, bem como os oblíquos [l]a e a fazem remissão textual à menina, a qual é retomada pelo pronome pessoal ela.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.


No terceiro parágrafo é apresentado outro ator na cena narrativa. E a remissão a esse novo referente se dá cataforicamente através do possessivo sua, referenciador da menina ruiva. A catáfora nominal um irmão é referenciador do sintagma cão. Um basset lindo, miserável, doce, ruivo, ele, seu, fazem remissão a cão. Logo em seguida os dois atores são referenciados por menina e cachorro.
 É interessante observar que, no parágrafo anterior, o referente menina aparece após um artigo indefinido. Também o cão, no parágrafo em questão, vem após um artigo indefinido. Mas no momento do conhecerem-se, bem como do enunciador os conhecer passam a ser referidos seguidos de artigos definidos.
Ainda tratando dos pronomes de terceira pessoal que fazem remissão textual, observa-se o [d]ela retomando menina, o ela retomando [d]ela e o oblíquo a retomando ela. O oblíquo o retomando ele, o pronome ele retomando aquele cachorro e o oblíquo  [l]o retomando ele.

Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos – lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.


O pronome reflexivo se faz referência aos dois atores: a menina e o cachorro, bem como o pessoal eles. No parágrafo observado, o referente menina ruiva é referenciado por criança vermelha.

Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.


O pronome ela por duas vezes faz remissão à menina. O pronome pessoal ele e o possessivo sua fazem remissão a cachorro, o qual é retomado pelo referenciador basset ruivo. O oblíquo se refere-se a basset, bem como o oblíquo o retoma o se, e o [l]o retoma o o e, em seguida, é retomado pelo pessoal ele.
É interessante pensar na construção desse texto a partir dos elementos em análise, atentando para o processo de geração de sentido no texto.
Em “Tentação”, o enunciador relata e descreve uma cena cotidiana a que se submetera. Como algo se dá a partir de seres desconhecidos e que, só após observações e reflexões desse enunciador intimista sabe-se da situação por que passam a menina e o cão ruivos – também a estratégia de construção dos enunciados opera por pronomes antes de apresentar o nome, bem como a apresentação do cão como sendo um irmão por já inferir a solidão da menina. A raça e a característica ruiva são descritas posteriormente porque são elementos observáveis só quando estão frente a frente, mas que o cão lhe seria um irmão, sabe-se de longe.
É a estratégia, a meta discursiva, gramatical (?), somando sentidos no tecido textual.
 
BIBLIOGRAFIA 
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1982.
IGNÁCIO, Sebastião Expedito. Análise Sintática em Três Dimensões. Franca (SP): Ribeirão Gráfica e Editora, 2003.
LISPECTOR, Clarice. Tentação. In: A legião estrangeira. São Paulo. Ática, 1977. pp.59-60.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de Usos do Português. Araraquara (SP): Unesp, 2000.
_______ . Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2007.














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